Percurso

Esta edição faz parte de um projeto que visou a recolha de canções tradicionais infantis nas várias regiões da Guiné-Bissau e a produção de um disco que pudesse ser simultaneamente um arquivo simbólico desta música e um objeto lúdico capaz de cativar crianças e adultos de todo o mundo.

Durante seis semanas percorremos as nove regiões do país, onde efectuámos 114 sessões de gravação, nas quais recolhemos cerca de 500 canções de 15 etnias, em 17 línguas distintas.

Foi devido a esta grande variedade étnica e linguística e por termos entendido que seria importante incluir pelo menos um exemplo musical de cada etnia que concebemos o alinhamento do disco como uma linha imaginária que percorre todas as regiões, simulando o percurso realizado durante a recolha. Em cada região do disco incluímos canções das etnias que aí habitam. A fazer as ligações entre regiões e representando o Sector Autónomo de Bissau, utilizámos vários temas em crioulo e um em português, línguas de confluência, agregadoras das várias realidades culturais do país. Tentámos desta forma não só representar a organização cultural, social e demográfica da Guiné-Bissau na própria estrutura do disco, mas também criar a sensação de uma viagem musical e sonora pelo território.

Utilizando as gravações da recolha como base de construção dos temas, adicionámos em Lisboa o contributo de músicos guineenses residentes em Portugal, como Gueladjo Sané, Braima Galissa e Bubacar Djabate, bem como outros instrumentos e objetos sonoros por nós tocados. Não pretendendo que o resultado final fosse apenas um registo puro daquilo que recolhemos, também não quisemos que fosse um trabalho de autor(es), opção que no nosso entender seria desadequada aos propósitos deste projeto.

O nosso objetivo último é que o povo guineense se reveja e identifique com este objeto, que esperamos que possa contribuir para a divulgação e dignificação da sua cultura musical em toda a sua variedade e riqueza, em particular a do universo infantil.

Fernando Mota, José Grossinho e Violeta Mandillo

Contexto

A Guiné-Bissau é um pequeno país situado no litoral da África Ocidental com uma população estimada em cerca de 1.800.000 habitantes e fronteiras com o Senegal e a Guiné-Conakri. O mapa do país com as suas fronteiras, traçadas a régua e esquadro na Conferência de Berlim (1884/85) pelas potências colonialistas na partilha dos territórios africanos, ignora os povos e culturas presentes no território que, com o fim da escravatura, passam a ser considerados mão-de-obra barata para o saque dos recursos naturais.

A diversidade étnica, linguística e religiosa, considerados como factores impeditivos do entendimento e colaboração no governo do país por organismos internacionais, pode antes ser uma enorme riqueza se o respeito e cooperação forem estabelecidos entre as culturas presentes no território.

Amílcar Cabral em dois textos fundamentais para a compreensão da singularidade da luta de libertação da Guiné-Bissau do domínio colonial realça como o processo que conduz à independência está intimamente ligado à afirmação cultural:

“… Verificou-se que a cultura é a verdadeira base do movimento de libertação, e que as únicas sociedades que podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra o domínio estrangeiro são as que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as características ideológicas ou idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico” (pp. 244).

A música, a dança, os contos e jogos aprendidos na infância são a chave para a permanência das línguas e culturas que enriquecem o país. Cantam e dançam muito, com os  meninos e meninas na Guiné-Bissau. Fazem-se jogos em que as palavras se repetem vezes sem fim, entoadas sobre motivos melódicos, a par com os sons da língua materna, onde as marcas de cada cultura estão presentes. Tudo se conjuga para que o sentimento de segurança que está associado aos rostos e vozes dos cuidadores da infância sejam o território de afecto e significado profundos que os acompanhará durante toda a vida. Quase tudo será para sempre entendido por esses filtros inconscientes, território imaterial presente em cada decisão e avaliação do que lhes é estranho.

Em cada criança que vive uma infância de felicidade e cresce no respeito pela diferença entre os diferentes modos de estar em sociedade reside a esperança de se criar um país mais justo e aberto à modernidade.

Domingos Morais, Inst. de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade Nova de Lisboa

Origem

O CD “Nha Mininu” – Música Tradicional Infantil da Guiné-Bissau é o ponto de chegada de mais de 3.100 km de sons percorridos, encontros e muita diversidade. Uma compilação de 31 temas infantis guineenses nas línguas maternas (traduzidos para português) registados, pela primeira vez, com a participação de dezenas de comunidades das regiões de Tombali, Quinara, Bafatá, Gabú, Oio, Cacheu, Biombo, Setor Autónomo de Bissau e Bolama.

Integrada no projeto “Cultura i nô balur” – promovido pela FEC – Fundação Fé e Cooperação e parceiros, com o financiamento da União Europeia, da Misereor e do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. – esta obra convida-nos a uma viagem à infância sempre presente, no trilho de um país repleto de culturas, cujo conhecimento e valorização se pretende levar com este projeto até junto do público, com especial enfoque nas crianças e encarregados de educação guineenses.

Espreitando por um mosaico de 15 etnias presentes na Guiné-Bissau, somos transportados por temas transversais a todos aqueles que falam e cantam em crioulo, papel, felupe, mansoanca, mandinga, saracule, balanta, fula, nalu, beafada, bijagó ou português. Os laços familiares e comunitários… O relacionamento com o meio que nos envolve. A angústia da perda embalados pelo sossego de um colo. Amores incondicionais e histórias que repetimos, vezes sem conta, nas asas de uma rima ou de uma lengalenga.

Com uma componente transnacional, este trabalho de recolha e edição estende-se por um território guineense mais vasto, contando ainda com a participação de músicos guineenses residentes em Portugal, que se juntam às vozes de crianças e adultos da Guiné-Bissau e aos diferentes ambientes sonoros que habitam. Mas se “Nha Mininu” é um ponto de chegada volta a ser um ponto de partida. Uma possibilidade de conhecimento da cultura guineense que, escutando-se a si própria e sendo escutada, se reconhece, se afirma e se reinventa.

FEC – Fundação Fé e Cooperação